Pular para o conteúdo principal

O meliante


Ela foi sequestrada por um meliante de boa aparência, à meia noite de um dia qualquer, com aviso e antecipação. Devidamente embriagada pelo vinho e o cheiro do sequestrador, sentia um frisson por seu corpo, arrepio em sua pele e algo mais que não saberia definir. Encarcerada no automóvel do meliante, ela não queria fugir, abrir a porta ou outra loucura qualquer. Sabia que daquele dia em diante, não teria mais volta, os sequestros seriam parte de suas noites e dias, provavelmente, intermináveis dias, seguidos por intermináveis noites. Talvez, a maior loucura seria a que seu coração e seu sexo antecipavam: submeter-se à horas e horas de submissão e tormento pelas mãos, boca e sexo do terrível sequestrador. Ansiava por isso.

Ele era doce e sombrio, ao mesmo tempo. Falava muito, mas agia sempre. Via em seus olhos que gostava de ter o poder sobre ela, experimentava suas reações. E ela se entregava a cada uma delas, cada tortura, cada toque, cada investida em seu sexo. Ela sentia um prazer absurdo em ser seu parque de diversões, sequer tinha medo do universo que ele apresentou a ela. Na verdade, esperou uma vida para encontrar alguém que o fizesse. Talvez, esperasse por ele. Mas essa não era a questão, por enquanto. A questão era o prazer, a entrega e o gozo. Ela sentia uma atração por cada nuance da expressão dele, cada entoação da sua voz. "Me tenha, Meliante. Me queime, me faça sentir" era o que pensava. Queria arder nas mãos dele, sucumbir em sua boca.

Sua células sentiam e pressentiam ele. Seus segredos poderiam ser descobertos por ele, mas não tinha medo. Ou não queria sentir medo. Medo, devidamente disfarçado por uma forte personalidade altamente sarcástica, era sua defesa. Sempre foi assim. Medo de sentir, o que é paradoxal em uma mulher que tem fome de vida, que sente o sangue correndo nas veias e absorve avidamente o que o mundo lhe apresenta. Alguns homens, poucos é verdade, se fascinavam por esses contrastes, ela sabia pelo brilho nos olhos deles e outra emoção qualquer. Mas ela era eficiente em os afastar, se algum deles mexesse com suas emoções e causasse calor no coração.

O Meliante tinha vontade de poder. E ela, vontade de ser submetida. Ela tinha suas armas, talvez uma delas fosse não ter toda a consciência de seu poder, de sua beleza. Essa mistura de força e fragilidade, de safadeza e reclusão emocional (alguém já havia falado sentir atração por seus paradoxos). Essa mistura de uma estatura baixa e corpo miúdo, rosto de boneca e olhos provocadores. Uma mistura de vulcão, terremoto, marés e ventos. E ela queria o meliante, desejava, por todos os poros, o toque dele, a voz e o comando desse homem.

A melhor embriaguez é a que se esconde entre duas mentes que se embebedam das sensações causadas tanto numa, quanto na outra. E o sequestrador obstinado, forte e deliciosamente alto, em contraste com sua compleição física pequena, a deixava excitada. O ar saia devagar enquanto esperava pelo próximo golpe dele, pelo ataque iminente a sua lucidez. O tempo parava por alguns segundos na espera. Ele a atacava intermitentemente, uma, duas, três, várias vezes, de maneiras torturantes e enlouquecedoras. E ela gostava.

Mas o tempo, infelizmente, é pautado pelos mundo fora dos dois. E foi interrompido, para o descontentamento mútuo. Ela queria mais, ele queria mais. O sono era um detalhe, não dormiu e nem dormiria, se isso significasse gritar de prazer por horas sem fim, perder a noção, entrar em transe. Mas até essa interrupção era parte do jogo. A espera pelo novo sequestro, a nova sessão torturante de seus sentidos a excitava. Uma parte de seu corpo tinha vontade própria, molhava e pulsava pela espera. O sequestro teve fim, não sem pesar. 

Agora, ela tinha medo e deleite. Um virada na esquina e ele poderia estar ali. Queria suas ordens, continuar o jogo. Mas era cedo demais para estabelecer regras ou esperar contatos mais contínuos. Cedo demais para tudo. Mas desejos são ordens físicas e seu corpo pedia satisfação, sua mente insistia. Quando retornou para sua casa, havia lava quente nas veias. Não quis tomar banho, tinha prazer em imaginar a saliva seca dele em sua pele, todos os cremes e produtos que havia usado nela. Imaginava que ainda estava ali, atormentando. Que doce tormento, que tortura perfeita em seus sentidos. E, mais uma vez, o ar saiu devagar enquanto imaginava o próximo sequestro. Que meliante terrível.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dessas cartas de amor

Tento escrever sem parecer clichê ou piegas, mas as palavras que são tão fáceis de encontrar parecem fugir de mim. Talvez eu esteja envergonhada ou subitamente tímida, veja só. Mas você causa isso e muito mais em mim. Sei que pode ler meus escritos antigos e pensar que é mais um ou que sou volúvel, a verdade é que os outros foram o caminho, você sempre foi e é meu destino. Aliás, somos o destino um do outro. Você sabe. Sei que gostaria de não sentir o que sente e até ensaiou fugas, sei que está surpreso e confuso. Você não é perfeito e comete falhas, saiba que a perfeição está longe de mim. Então o aceito como é, meu amor enxerga seus defeitos e problemas e isso o faz humano. Hoje em dia, todos querem pessoas perfeitas, relações sem dificuldades, gente sem problemas, porém somos reais e carregamos uma bagagem de vida que nos deixa inseguros, orgulhosos, covardes, assustados. Essa é a vida, a vida possível. Em alguns momentos é pesada e rouba a espontaneidade, quero que a gen...

Para você

Há muitas mulheres em mim, todas intensas, profundas e fora dos padrões. Minha multiplicidade me fez e faz ser uma rebelde, uma inconformada, uma questionadora. E, no momento em que escrevo essas sinceras linhas, me dei conta de que todas essas mulheres amam você, my burning love. Você que é por quem eu sempre procurei e não sabia, que é tudo que quero e não sabia. Você, só você teve as mais apaixonadas e verdadeiras declarações de amor, você que é o imperfeito mais certo para mim. Você, que teve meu tempo, meu medo, meu corpo, minha mente, minha alma. Você faz todas as músicas e poesias se encaixarem e, enfim, eu perceber a dimensão desse sentimento que tomou conta de mim. Aquela música da banda Queen, You are my best friend, por exemplo. Tinha a sensação de que quando associasse alguém a essa canção teria encontrado uma pessoa por quem valeria a pena derrubar meus muros. E, olha só, do nada, um dia, pensei em você e nessa música ao mesmo tempo. Sabe o por quê? Amore mio...

De onde vem os poemas

Fiquei anos sem escrever poesias ou textos porque faltou o ingrediente principal das minhas transpirações e inspirações: sentimento. Sim, clichê, não é? Justo eu, que sempre fiquei alguns graus fora do ângulo, cometo esses clichês e ou lugares comuns. Mesmo querendo fugir, tropeço nesse troço insondável chamado amor e suas implicações ora leves, ora duras e que tão lindamente me fazem sentir a vida correndo nas veias e deslizando para meus textos e poesias. Para minhas palavras atingirem fulminantemente o cérebro e os corações alheios primeiramente o meu cérebro e meu coração precisam estar flechados e perplexos com emoções indizíveis e mágicas. Sim, acredito na magia dos momentos e na poesia suave que pode ser criada a partir de um sentimento. Meu coração precisa ter um tanto de ideias e um tanto de pessoas dentro dele para que as emoções fluam e se transformem em poesias e textos. Para que eu flua e me transforme em poesia. Um equilíbrio de emoções que até podem parecer...